terça-feira, novembro 23, 2004

Pulo do Lobo

I.

Apura o ouvido
À história que te vou contar,
Que é lenda caída em olvido,
De tempos esquecidos,
E que agora vou recordar.

II.

Há um lugar
Onde uma ferida se desenha
Na rocha que sangra
Um Guadiana em fúria.
Um lobo aperfeiçoa a manha
E a destreza de o pular.

III.

Uma moura havia
Que na alva manhã
Carregada descia
As roupas para lavar.
Lava-as cantando,
Que entretanto,
Uma magia se espraiava no ar.
Era canto levado na corrente,
À gente que se abeirava ao mar.

IV.

Ouvia o lobo este canto,
Que num doce manto
O veio aroupar.
Sentiu que por artes e alquimias,
Pelas estranhas manias
De um destino cruel,
Foi-se o lobo apaixonar
De uma morena
Que andava a lavar
Roupa no Guadiana.

V.

Um dia,
Embriagado pela coragem,
Pulou até à margem
Onde a moura lavava.
A andaluza sorriu,
E nesse sorriso uma perdição,
Apaixonado uivava
O lobo, que lhe roubavam o coração.

VI.

Repetiam-se as visitas
Na directa proporção dos dias que se seguiram,
A moura cantava,
O lobo uivava,
Abafando o ruído da corrente.
Juntou-se-lhe a gente
Que queria ver o pulo do lobo.

VII.

De manhã cedo,
Velada ainda pela neblina,
Cantava a moura letras de outras paisagens,
Não tardou o lobo a espreitar no rochedo,
Correndo valente ao salto,
Espreitando a outra margem,
Alimentava-o a coragem,
Que a prática e destreza soube polir.

VIII.

Num dia nascido para a má memória,
Ao canto da moura ocorreu o lobo.
Reza a história
Das gentes do lugar,
Que as forças quebraram,
Que a rocha estava húmida e resvaladiça,
Que o lobo confiado não soube descontar,
As pedras que na noite se soltaram
E não o puderam salvar.
Sei-o eu, caro leitor,
Porque não pode o lobo saltar,
Pesava-lhe o coração pelo amor
Que era carga que não pode aguentar.
O pulo fez-se curto
E imensa se tornou a solidão.
Abraçou-o o Guadiana
Que o levou ao mar.

IX.

Chorou-lhe a moura a ausência,
Num sofrimento sentido,
E para que não caísse em olvido
Deixou-se lá ficar.
Um dia, outro dia….
Numa soma que não posso precisar.
Estendeu-se na margem envelhecendo,
Deixando-se ficar.

X.

O Guadiana tornou-se lágrima
Tocando o corpo rugoso que chora,
É a moura que eternizou a espera,
Como eterna é a demora.
Espraiam-se as rugas
Na margem do Guadiana,
No sussurro da corrente,
Diz a gente,
Que se ouve ainda cantar,
É a moura que chama o lobo
Que num pulo há-de chegar.

Para AF

1 Comments:

Blogger maga said...

Olá João,
Somente hoje tive tempo de passar aqui com mais calma, ler com mais atenção; passar os olhos por vezes pode ser até proveitoso, mas neste caso é desperdício. Há de se consumir tudo. :-)

Pouparei os elogios,pois admito não saber usá-los muito bem, mas o principal (em minha humilde opinião) foi que me tocou. E ponto. É isso.

Espero que meu novo blog (uma réplica de um antigo) tenha o mesmo efeito do que eu sustentava aqui no blogspot...

fique bem.
Julia.

2:19 da tarde  

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