quinta-feira, dezembro 30, 2004

Fazer de conta

Vamos fingir!
Eu faço de conta que escrevo,
e já que estamos nestes empenhos,
nestas manhas do sentir,
em mentira e sem rigor,
vamos disfarçarmo-nos de poeta e leitor.
Vamos, por desenhos,
escritoe na folha branca,
mentirmo-nos mutuamente.
Assim...
Eu finjo que sou poeta,
e tu fazes de conta que ouves,
finges que tenho jeito
e, posto que está o mal feito,
Mentes-me com uma lágrima,
segredando-me que te a roubei.
Eu...
Faço de conta que acredito,
que essa lágrima é todo o meu mundo,
que é o aquário onde medito,
e onde pesco outras lágrimas tuas.



domingo, dezembro 12, 2004

Primogénito

Pari-te entre lágrimas e sangue,
como quem teme pôr ao mundo,
que não te merece,
toda a alma desnuda.
E por vezes acontece,
que no fundo de mim,
algo floresce com tamanho vigor,
que toda a dor,
toda a vontade,
toda a geografia das palavras que uso,
são mínimas.

Beijo-te com lábios de papel,
ao chamar-te pelo nome que te dei,
sorri-te e sorriste-me,
soube então, como hoje o sei,
que o ser se me partiu em dois,
és tudo o que dele vale a pena,
De um dia mil sóis,
e outras tantas luas
das noites escuras que por ti esperei.

Dei-te a mão,
abri-te o coração.
Deste-me outros olhos para o mundo,
outro andar sobre estas andanças
no teu corpo branco.
No mais profundo
de mim nasceram outros,
com igual dor,
também eles entre lágrimas.






Assim é a poesia

Mimoseando as palavras,
sou como uma criança de olhos brilhantes,
que descobre em cada verso um novo mundo.
É que no fundo,
todo o mundo é um só instante.
Depois...
quando descubro uma rima
que sai ocasionalmente,
os olhos brilham-se-me, os dois,
com uma ilusão inundada de meninice.
Como quando era pequeno
e na tagarelice monossilábica,
dos meus discursos imperceptíveis,
soltava uma palavra perfeita.
E, com a palavra feita,
e um sorriso desenhado no rosto,
arrancava risos e expressões de espanto,
aos graúdos e crescidos,
que embevecidos
pediam que repetisse a façanha,
da qual não tenho governo.
Assim é a poesia.
Tal qual as primeiras e tímidas palavras,
que se soltam à força de ensaios e teimosia.