segunda-feira, janeiro 17, 2005

Uma batalha ganha


Estou a armar-me para morrer,
desta morte que é escrever,
um poema de peito aberto.
Assim, entrego a alma a quem ma alugou.
Devolvendo os dias, as horas e os seus minutos
ao relojoeiro da História.
Guardo na descosida algibeira, os diminutos
seres que de mim há memória,
e que, já agora, valham a pena.

Ao carcereiro dos mil seres de mim
entrego-lhe as chaves da cela do meu último eu.
Recolho delicadamente no jardim
o cravo que a Rosa pariu.
Sou eu!
Filho da Maria desta Vila,
Rosa das mulheres deste mundo!
Sou eu! Poeta da matilha
dos silêncios ignorados,
Cavaleiro Quixoteano.
Hoje vou morrer novamente!
Outra morte de mim,
trespassado pelas palavras.
A poesia mata assim!

(Ainda que não pareça, este poema não é triste. Desafio aos leitores a dar-lhe a volta e descifrar o seu simbolismo)

Praia


A minha vida
é toda um instante.
É o areal de uma praia,
que estendida,
é toda ela militante.

Milita nas ondas armadas
da cadência dos regressos,
que toda a vida são variadas mortes,
e todas as sortes
são da vida excessos.

Toda a minha vida,
todo esse instante tolo,
são nesses olhos
uma lágrima perdida.
São escolhos
de uma onda salgada
que morre nas areias do teu rosto.

Nessa tarde desenhada
nas cores pardacentas e outonais
do entardecer dos dias,
somam-se outras ondas, as quais
erguem o sindicato da saudade.
Juntam-se-lhes as pegadas,
dos passos das gentes passadas,
donos dos olhares perdidos e achados
Numa praia distante,
que a vida assim somada,
é toda ela um só instante!

Para a Sónia Shorty (Amiguita aqui tens um poema sobre uma praia)

segunda-feira, janeiro 10, 2005

O Carteiro

O carteiro morreu!
A velha bicicleta descansa no pátio,
no silêncio das vozes escritas
de uma entrega que nunca aconteceu.
Adensam-se os remetentes
que se insurgem contra a demora da entrega,
é que dantes,
enquanto o diabo um olho esfrega,
já a carta bebia toda a curiosidade do leitor.

Mas hoje não há selo que viagem garanta.
Tudo demora,
ao carteiro chegou-lhe a hora.
A velha bicicleta, outrora trotamundos,
mergulhada nos teres e haveres da desolação,
estrega-se de alma e coração,
às saudades do ritmado pedaleio,
de um carteiro,
que entrega o seu corpo em carta aberta
ao último dos destinatários.

Continuar-se-ão a escrever cartas avulsamente,
com destinatário e remetente,
sem que saiam do saco polurento do silêncio.
Morreu o carteiro!
Todos se entregam ao mutismo!
E eis que o mundo inteiro
hoje monologa,
sem que o oiçam,
sem que se oiça!


A Marcha

Recordas-te dos corpos que tiritavam
nas frias ruas do esquecimento,
palco das marchas cambaleantes,
empurradas pela força bruta das vozes que gritavam
palavras arroupadas de símbolos?

Partilhávamos o sonhos de sermos,
uma pluralidade de corações que pululavam
ao sabor de um unissono eco,
mergulhado na esperança
dos que , como nós, giravam,
nas geometrias apaixonadas, sobre um eixo comum.

Eramos tantos e tão jovens.
De coração tenro e ingénuo,
era firme e eterno
o juramento a que nos associavamos.
Ambicionávamos
mudar o mundo,
e já que estavamos predispostos à audácia,
pediamos ser os actores de uma renovada História,
quisemos escrever a memória,
e assinar os ecos futuros,
com nomes colectivos,
dos inúmeros rostos puros,
jovens e sonhadores,
capitães e remadores
das ondulantes praças da vida.

Hoje... passados que estão os anos,
já nos treme a mão
que assina o manifesto da verdade.
Passados os tempos de então,
Já se nos fazem irregulares
as pegadas no chão das praças da vida.


(Sou mesmo mau a pôr títulos nos poemas, se tiverem paciência para sugerir algum faça o favor, para qualquer um dos poemas deste blog). Abraços.