domingo, outubro 24, 2004

Pedras da calçada

Esta praça onde se espraiam
As pedras de calçada,
Polidas pelo peso dos corpos,
Conhecem os diferentes andares,
Coxeares
E inclinações.
Estendem-se às bengalas,
Movem-se divertidamente
Debaixo dos pés do ébrio.
São chão composto,
São puzzle do tempo.
São sobretudo caminho,
Em alegre andar,
Para casa,
Para o jantar.
São pesados passos,
Marcada tristeza,
Que o trabalho é já ali.
Testemunho dessas e outras coisas,
Conhecem os segredos da noite,
Os seus múltiplos cheiros
E as suas náuseas.
Conhecem as tardes de glória,
Os golos e fintas,
E as quedas também,
Dos miúdos
De então,
Dos agora graúdos
Que levam os seus pequenos em mão,
Para mais uma jogatana.
São as pedras da calçada,
Polidas pelos andares
Desta praça principal.

O Poeta

Um poeta veio sentar-se ao meu lado,
Com a calma própria dos artistas,
dos hermeneutas do mundo,
argonautas das semânticas,
Velejadores da sintaxe.

Sorriu-me com um sorriso largo,
Como uma tarde prolongada de Verão.
Olhou as ondas
Que furiosamente uivavam,
Ouviu o sussurro dos ventos,
O aviso das gaivotas.
Olhou-me, com olhos de poeta,
Com os olhos de quem pinta o mundo
À força das palavras,
E disse-me, com uma voz firme,
Algo que não esquecerei.

O poeta partiu,
Ficaram as pegadas na areia,
Ficaram os passos firmes,
O testemunho de um andar,
A recordação de uma presença.
Virá o vento,
Depois as marés,
E os pés,
As pegadas que ali ficaram,
Desaparecerão.

O poeta é mesmo assim.
É voo das gaivotas,
O mar ululante,
O vento que sopra,
As pegadas na areia,
A tempestade que há-de vir.

O poeta?
O poeta é ser!
É latido de cão vadio.
É sussurro da consciência.
É,
Tantas vezes em sofrimento,
O inimigo da página em branco!

sábado, outubro 16, 2004

São sussurros
Estas vozes de mim,
Soam do nenhures que enfim,
Por não poder soar de outra maneira,
Soam assim...

É este silêncio consentido,
Com vontade e intenção.
É este falar e estar calado,
E não saber quantas são,
As almas deste purgatório,
Que no silêncio se amontoam,
Assim soam...

Quase não se ouvem,
Estas almas de mim.
Mas enfim,
Que não valha o tudo que se faça,
Que os sussurros são mesmo assim.

São quase tudo,
No incompleto ser que são.
São gigantones,
Um anão,
Um moinho de vento que sopra.
Uma onda que bate na violência
Imperturbável da vontade.
São vaidade
Nas vozes das gentes
Que ausentes
Assim soam.

quarta-feira, outubro 13, 2004

Saudade

Já não és hora,
nem minuto,
nem instante,
fugaz ou diminuto.
És caminhar de peregrino,
sobre pedra de calçada,
És alma perdida,
e pena achada.

És canto,
grito mudo,
és espanto,
és nada e tudo.
És, nos mil trabalhos de ser.
Já sei! És ausência!
És centenas de tardes e dias
com as suas noites também,
e que mal tem,
se não sei dar-te um nome?
És... com tremenda certeza,
o peso que levamos no peito.
És a destreza,
assaz treinada pelo jeito.

Espectáculo

Fui conhecer o Circo,
acrobatas das piruetas,
contorcionistas e marionetas,
palhaço pobre e o rico.

Entre cores e tons,
que o circo é mesmo assim,
uns são maus outros bons
e todos são o circo de mim.

Sorrio por entre aplausos e gargalhadas,
que as fantochadas
e tontice, é coisa repitada.
Assim é o circo da nossa vida.

Sem maquilhagem
que tudo esconde e mente
fica a triste folhagem...

Já não mente,
Já não omite a verdade que sente.
O espectáculo continua sem que remédio haja...

quinta-feira, outubro 07, 2004

Os sinos da Sé


Tocam os sinos
em cadenciado cantar.
São meninos.
Na arte de soar.

Encimam a torre alta
da Sé.
São gigantes os meninos,
Hermes da Fé.


Movem os corpos de metal talhado
num ritmo pendular,
baloiçam o corpo pesado
que range e manda soar.

Já foram velhos os meninos.
que do alto da torre apregoam.
São sinos,
que demandam conquista
e assim soam.


Ide, tempos de outrora.
Que os meninos,
sinos,
navegantes dos sons solenes,
irão espraiar-se nas praias auditivas,
no porto da nossa fé.

Ecce Homo

I.

São os gigantones,
fantoches do poder,
que baloiçam na sua catedra e trono.
Empunham o ceptro quebrado,
do lugar dado,
Sem meritório caminhar.
Deixa-os estar,
alegremente entregues a si.
Filhos do Nada,
esquecidos de tudo,
baloiçam no seu trono,
com aguerrida fé,
lutando por sobreviver.
Conscientes do nada
que a soma do tudo que são é.
São corvos,
que nos picam os olhos.
São escolhos,
indesejados,
são fragéis
despojos que aos molhos
emergem na amalgama da arrogância.

II.

Sois a vergonha,
o silêncio e a enfermidade.
Sois gente de pouca coisa,
fidalgos da gargalhada.
Sois escárnio para os méritos e virtudes.
Sois as vicissitudes
de um país que vos merece.
Sois bôbo em corte de palhaços,
Plumas, bujigangas,
lantejolas e missangas.


III.

Fica escrita,
em carta aberta,
que este aplauso que vos dedico,
é nojo profundo.
E por aqui me fico,
que escrito está!
Escrevo abertamente,
porque sois estúpidos
e ainda que nomeasse
nomes e lugares,
não saberieis do que estava a falar.


1996 - Évora